Design Rio: Na prancheta de Sergio Bernardes, o ideal de um mundo melhor

Arquiteto caminha pela orla de uma Barra em construção: imagem está no documentário “Bernardes” – Sebastião Marinho (05/04/1979)

Arquiteto modernista é responsável por obras como o Pavilhão de São Cristóvão e os postos de salvamento da orla

Por Simone Candida, Ludmilla de Lima e Rodrigo Bertolucci

RIO — Na década de 1960, o arquiteto Sergio Bernardes foi contratado pelo dono do Hotel Quitandinha, Joaquim Rolas, para criar no pedaço de uma praça, no Largo de São Cristóvão, um pavilhão que abrigasse diversas atividades comerciais. Entre os desafios do projeto estavam a forma do terreno — elíptica — e o calor da região, que poderia transformar uma visita ao tal centro em um programa escaldante. Bernardes aproveitou o contorno da praça e imaginou uma estrutura com coluna de concreto de alturas variáveis, com uma grande viga em cima, que o arquiteto Murillo Boabaid comparou a um estrado sobre uma ponte ondulada. A cobertura do espaço foi feita com um sistema suspenso, apoiado sobre uma série de cabos de aço fixados em cabos tensionados. Uma novidade para a época. Tempos depois a cobertura foi retirada durante uma reforma. Nos grandes vazios formados pela variação nas alturas das colunas, foram incluídos tijolos de saibro fabricados sob encomenda, que permitiram uma permanente ventilação cruzada através do grande vão. Nascia ali o Pavilhão de São Cristóvão, construção que hoje abriga a Feira Nordestina, e que — junto com os postos de salvamento da orla do Rio — é uma das mais conhecidas obras do arquiteto modernista no estado.

UMA DEZENA DE PROJETOS PREMIADOS

Mas o Rio e o restante do país têm muito mais marcas de seu talento do que pode supor a maioria: recebem a assinatura do carioca o conjunto residencial Maria Cândida Pareto, no Humaitá, um exemplo de ocupação de encosta que já na década de 1970 usava a ideia de planos inclinados, e uma dezena de projetos premiados de residências, entre eles o da casa de Lota de Macedo Soares, em Petrópolis (1951), e a do cirurgião plástico Ivo Pitanguy. Seu acervo guarda, ainda, ideias que brotaram da cabeça de Bernardes mas nunca deixaram as pranchetas: um avião planador, planos urbanísticos para favelas, bairros verticais autossustentáveis, e até uma proposta de despoluição, de um porto-canal que ligaria as baías de Sepetiba e Guanabara.

— Meu avô era antes de tudo um pensador. Preocupava-se em pensar projetos para um mundo melhor. Por isso, foi tão incompreendido — diz o neto e também arquiteto Thiago Bernardes, que assina o argumento de “Bernardes”, documentário que se propõe a revelar um lado desconhecido do arquiteto, e que será lançado dia 19 no Rio e em outras cinco capitais.

A ideia do longa, dirigido por Paulo de Barros e Gustavo Gama Rodrigues, nasceu da inquietação de Thiago, que queria entender o porquê de a obra do avô ter sido quase esquecida nas faculdades de arquitetura do país nas décadas de 1980 e 1990. O fato de ter realizado projetos para o governo militar é uma das hipóteses. Ele fez o mastro da bandeira da Praça dos Três Poderes e entre seus projetos não realizados está o do Instituto Brasileiro do Café (1972), em Brasília.

SEM MEDO DE OUSAR

Durante o filme, o espectador é convidado a visitar algumas das mais belas obras do arquiteto, que morreu em 2002, aos 82 anos. É o caso da residência de Lota de Macedo Soares, em que ele lançou a solução inovadora de usar estruturas metálicas.

— Ele não tinha medo de ousar e tinha grande domínio da técnica. Vários calculistas que trabalharam com ele contam que pegavam o projeto praticamente pronto e só refaziam as contas para garantir — conta o arquiteto João Pedro Backheuser, que em 1993 fez uma pesquisa sobre o trabalho de Sergio Bernardes e acabou tornando-se seu amigo.

Em 1997, a pedido do então prefeito Luiz Paulo Conde, conta a jornalista Kyka Bernardes, viúva do arquiteto, Bernardes redesenhou e atualizou o projeto do Pavilhão, transformando-o em arena poliesportiva de alta complexidade e criando os hotéis no entorno que gerariam renda para o empreendimento:

— Ele tinha hábito de estudar o ponto focal do projeto e seu entorno, analisando os impactos que poderiam gerar. O projeto ficou pronto, mas não foi executado. A ideia não foi de todo perdida, pois o que vemos hoje no Porto Maravilha é a inspiração da solução estudada por Sergio para a área portuária, São Cristóvão e Maracanã.

Arquiteto de formação, Sergio Bernardes considerava-se, acima de tudo, um inventor. E era apaixonado pelo Rio. Em junho de 1978, criou o Laboratório de Investigações Conceituais (LIC), instituição que ele dizia já existir informalmente desde a década de 50. Um grupo multidisciplinar discutia ideias para melhorar a qualidade de vida dos cariocas. A lista de projetos incluia os bairros verticais (com torres de um quilômetro de altura) e uma ponte turística entre Rio e Niterói, apoiada em hotéis. Pensava também soluções para o Brasil, como um sistema de interligação de todos os rios brasileiros.

— Seu projeto mais emblemático é o “Rio do Futuro – Antevisão da Cidade Maravilhosa no Século da Eletrônica”, publicado em um número especial da Revista Manchete no ano de 1965. Bernardes presenteia a cidade e apresenta soluções urbanas ousadas para o município como um todo — explica — Divide o Rio entre Rio I e Rio II, o que chamamos de Zona Oeste, Barra e Jacarepaguá, apontando críticas ao crescimento desordenado da cidade que iria gerar o estrangulamento das pontas de serviços e sistemas de transporte, inviabilizando, no futuro, a administração publica, pelo caos gerado na falência dos serviços básicos, caso nenhuma atitude fosse tomada na direção de um planejamento urbano. É um projeto que trata da humanização do Rio ao mesmo tempo em que o transforma em polo turístico e centro de economia continental — completa Kykah Bernardes, que é uma das autoras do livro Sergio Bernardes.

Desde 2011, o acervo do arquiteto, que reúne em mais de 22 mil plantas, croquis, textos, teses e poesias e mais de 8 mil fotografias e está sendo pesquisado, recuperado e catalogado pelo Núcleo de Pesquisa e Documentação da FAU- UFRJ. Segundo a coordenadora do núcleo, a arquiteta Elizabete Martins, a equipe vem encontrando surpresas entre os muitos documentos. A maioria dos projetos nunca foi executado.

— Começamos há um ano o inventário do acervo. É um trabalho muito lento e cuidadoso, porque os trabalhos de arquitetura são feitos em papel manteiga ou vegetal, muito frágeis. Estamos encontrando coisas preciosas, que pouca gente conhece, como aquele conjunto no Humaitá, que visto de baixo muita gente pensa que é uma favela. Na época, era uma habitação mais popular, mas hoje os imóveis valem muito. Curiosamente, nos anos 60, ele fez o plano de urbanização das favelas do Rio, e neste plano ele começa a pensar em casas daquele tipo. Ele usa ali dois planos inclinados, solução que estão sendo usadas em favelas hoje — comenta.

Para o presidente do IAB-RJ (Instituto dos Arquitetos do Brasil), Pedro da Luz, Sergio Bernardes criava projetos para lançar ideias e incitar o debate.

— Um ótimo exemplo é o projeto de conexão das bacias hidrográficas do Brasil. Ele tinha também um projeto de um ponte ligando Rio a Niterói com uma área para transporte sobre trilhos.

 

 

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