Beltrame sugere reforma urbanística.

ENTREVISTA  – JOSÉ MARIA BELTRAME

UPP – ANESTESIA PARA A CIRURGIA DA TRANSFORMAÇÃO

Kalinka Iaquinto, do Rio de Janeiro

Depois de sete anos à frente da articulação da política de segurança que instalou as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em favelas cariocas, José Mariano Beltrame suscita um novo debate. Propõe que os poderes constituídos e a sociedade quebrem um tabu e discutam, sem ideologia político-partidária, uma reforma urbanística nessas localidades. Entre meando a conversa com seu jeito de falar gaúcho, Beltrame defende que o afastamento da criminalidade, está diretamente ligado a mudanças estruturais nas comunidades, que, segundo ele, da forma como estão, são propícias a esconder criminosos, armas e drogas. Refuta a ideia de que favelas são, sempre, casos de polícia ao defender que os demais serviços, como saúde e educação, cheguem aos morros. Por isso, diz que as UPPs são uma anestesia para a cirurgia das transformações. O secretário sugere a criação do Ministério de Segurança Pública e anuncia que não pensa em sair candidato nas próximas eleições “nem aqui, nem no Congresso, nada”. Conjuntura Econômica — No mês passado, as UPPs completaram cinco anos de existência. Como avalia a iniciativa e quais os desafios futuros?

José Mariano Beltrame — Olhando para trás, eu vejo uma infinidade de aspectos positivos. Acho que — vou usar uma expressão que eu já usei — a segurança pública criou nessas áreas uma oportunidade para que aqueles lugares, efetiva mente, sofressem e sofram uma transformação. Transformação essa que vá desde a cidadania para as pessoas, passando por assistência social, por saúde, por todos os aspectos que envolvem cidadania e, sem dúvida nenhuma, até para dar uma nova cara pra esses lugares. Para uma mu dança da configuração urbana das favelas. Uso uma expressão, que não seja mal interpretada, mas a UPP é uma anestesia para que se proceda a uma grande cirurgia. A UPP é uma oportunidade para que aconteça uma série de outras coisas que acontecem nos outros lugares da cidade.

CE – E quando o senhor sugere essa grande cirurgia…

JMB – É a verdadeira transformação, a verdadeira integração dessas áreas com o restante da cidade. E penso que essa cirurgia deve, inclusive, tocar no aspecto da configuração geográfica da urbanização. Mexer na favela. Isso é um tabu aqui no Rio de Janeiro. As pessoas enchem esse assunto de ideologia político-partidária e discutem isso ideologicamente, mas acho que é um tabu que a sociedade tem de discutir e chegará conclusão de que o estado não vai conseguir fazer tudo.

CE – Um tabu ou, além de um tema espinhoso, há por trás disso certo comodismo?

JMB – Acho que é um tabu mesmo. Um assunto muito recheado de política partidária, ideologia. Porque veja bem uma coisa, você pode ter o melhor serviço de assistência à tuberculose embaixo da Rocinha — onde temos os maiores índices da doença no Brasil —, aquele hospital ali não vai resolver o problema da tuberculose. O que vai resolver é abrir a Rocinha, arejar a Rocinha, é fazer o ar correr e o sol chegar.

CE – E como conseguir isso? Como ultrapassar essa barreira?

JMB – Penso que por meio de um grande pacto, de um grande entendimento de toda a sociedade, envolvendo os poderes públicos, Judiciário, Legislativo, Executivo, a sociedade, no sentido de dar essa nova cara para esses lugares. E há que se ter pressa para resolver isso. Disse numa entrevista: o que vai ser de uma favela dessas daqui a 20 anos? Isso tem que ser resolvido porque as pessoas acham que o Poder Executivo resolve tudo. Eu conheço o Hudson Braga, da Emop (secretário de Obras do estado, que tem sob sua pasta a Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro), que tem 211 ações na Justiça contra ele por estar fazendo obras públicas. Recorrer é um direito que a pessoa tem, e o Estado democrático acata o direito dessa pessoa. O teleférico aqui da Providência está parado por causa de uma ação judicial. Porque aquela pessoa foi na Justiça e obteve seu direito de não ser importunado por aquela obra. Então, em vez de se abrir uma avenida, que custa muito mais barato, você vai fazer um teleférico que tem o custo alto, que tem um custo de manutenção mensal altíssimo. Está na hora de todos nós discutirmos isso. Tem de haver um tratamento diferenciado, especial, para poder integrai por que senão vai ficar sempre na anestesia.

CE – E esse tratamento diferenciado passa por uma revisão da forma como atuam o Legislativo, o Judiciário e o próprio Executivo?

JMB – Esses poderes têm de vir para essa conversa para ver que, sem dúvida nenhuma, uma pessoa que está pleiteando algo na Justiça tem esse direito, mas, em contrapartida, será que quantas outras centenas de milhares de pessoas não seriam beneficiadas? Por isso, o tema não pode ser visto como tabu. Se eu tenho uru cano de água potável para subir e esse cano vai e para em uma casa, será que não dá para mudar essa casa de endereço para beneficiar 40 mil pessoas? Agora, a pessoa pode entrar na Justiça, tem esse direito. Sei que tem pessoas que, politicamente, podem comprar a briga desse morador, então acho que tudo isso tem que ser arrumado, discutido de uma maneira séria para que se resolva realmente esse tipo de problema. Na calçada aqui da secretaria há uma rampinha para um paraplégico descer, como é que “tu tira” um paraplégico do alto do Morro da Formiga? Vejo que são transformações absolutamente necessárias, mas que acabam sempre no resultado da anestesia: polícia, polícia, tudo cai no punitivo. Esses lugares, como eles estão, sempre vão servir para bandido se esconder, para esconder armas, drogas, munição, e a questão vai “arrodear” sempre em polícia, polícia, polícia.

CE – As pessoas e os poderes constituídos têm de se conscientizar de que agora a manutenção da segurança e novos avanços não são mais problemas apenas da polícia.

JMB – Exatamente. E têm que abordar isso com seriedade, isento de qualquer política partidária e de ideologia. Botar em jogo o interesse público.

CE – A forma como o tráfico atuava nas comunidades era a questão mais polêmica do Rio. Depois das UPPs, houve diminuição da atividade das facções?

JMB – Teve, o tráfico ficou meio sem alternativa, mas, obviamente, o crime se reacomoda de outra forma. Mas, teve, sim, um impacto considerando que os verdadeiros bunkers, os verdadeiros QGs foram atingidos, corno Rocinha e São Carlos, que eram da ADA (Amigos dos Amigos), e Vila Cruzeiro e Alemão, do Comando Vermelho.

CE – Essas pessoas migraram para outras comunidades ou cidades?

JMB – Muito poucos migraram porque são pessoas com pouca renda, pobres e que, muitas vezes, não têm como ser recebidas em outro lugar. E os chefões, muitos nós prendemos, outros migraram, não tenha dúvida. Porque quem migra é aquele que tem condição de fazer isso. Assim como o Fabiano (Fabiano Atanázio da Silva, o FB, que chefiava o tráfico de drogas nos complexos da Penha e do Alemão) que foi pra São Paulo e a gente conseguiu prender. Os que escondiam armas, armazenavam drogas, que “endolavam” (embalar drogas para a venda), esses vão ter que ficar ali. Viviam com R$ 10, R$ 15. Esses, por vezes, podem tentar alguma coisa, mas aí eles vão encontrar a polícia. E, só para te dar um dado interessante, “tu sabe” que as UPPs hoje são as responsáveis pelo maior número de prisões? Prendem mais que os batalhões, mais que as delegacias. Mas, é aquela coisa, cinco papelotes (pequeno embrulho de papel ou plástico com cocaína), quatro papelotes, 10 gramas.

CE – Os resultados são atribuídos à própria ação dos policiais ou a população está mais à vontade para denunciar?

JMB – Infelizmente, o tráfico há umas décadas era aquela história: o cara da Zona Sul ia buscar a droga, hoje é para consumo interno. Lugares como a Rocinha têm consumo interno e São Carlos, Maré e Jacaré também. Então antes era “ah, o cara vai lá buscar”. Hoje, além de ir buscar, tem o consumo interno.

CE – A política de segurança adotada pelo estado na capital é tida por muitos como um case de sucesso. O senhor acredita que o modelo poderia ser adotado em outras capitais?

JMB – Acho que se pode tirar algumas coisas da UPP, mas ela é muito carioca. É para uma realidade nossa. E algo como o nosso “tu não vai” encontrar no mundo. A problemática do Rio de Janeiro eu nunca vi em outro lugar. Acho que muitos dos problemas de segurança pública no país — e na própria América Latina — se resolveriam com essas questões de cidadania. Só que aqui não. Aqui como eram bunkers, ilhas, tivemos primeiro que entrar com a força policial forte. Mas acho que em outros lugares pode-se fazer o contrário. Como a gente diz: dar um “banho de loja” no lugar.

CE – Recentemente o senhor defendeu a criação de um Ministério de Segurança Pública…

JMB – Sim, antes eu não pensava, agora eu penso que sim.

CE – De que maneira o senhor, como articulador de uma política de sucesso, poderia influenciar para que isso se efetivasse?

JMB – O atual governo não pensa nisso, mas acho que deveria pensar. Isso foi retirado da Constituição em 1988. Nossos legisladores deixaram isso para os estados e educação e saúde como sendo da competência federal, segurança ficou fora. Isso foi um erro, embora a gente tenha uma das melhores constituições do mundo. Naquela época ninguém queria falar de segurança, era sinônimo de repressão, então todo mundo deixou aquilo de lado, passou para OS estados e os estados pegaram e também deixaram aquilo meio de lado. Meio que militarizaram isso. Os militares é que davam aula, a polícia militar é paramilitar e “tu teve” aí uma polícia civil que também se infiltrou um pouco dessa lógica. Em função disso, não tem administradores de segurança pública, nem especialistas nessa área. Nós mesmos aqui fizemos uso de consultoria externa. Acho que isso foi um erro e que esse erro pode ser reparado com um ministério. E vejo o ministério com quatro, cinco ou seis linhas mestras. muito grande para você querer que uma política de segurança do Rio de Janeiro caiba dentro do Pará. Mas tem coisas que são plenamente possíveis de usar como nacional: campanha para redução de homicídios, quem sabe um sistema de comunicação, um sistema de inteligência, algo assim. Cinco ou seis projetos grandes. O ministério seria uma maneira de um dia estar sentado à frente do presidente da República e, efetivamente, esclarecer como essas coisas acontecem. Porque são muito diferentes as realidades das capitais brasileiras. Muito diferentes.

CE – Falando em diferenças, aqui no Rio o senhor adotou um novo modelo para as polícias, dando ênfase a novos policiais. Há críticos dizendo que isso poderia supor que o problema que víamos entre as polícias estaria somente na formação do policial. Como o senhor avalia as críticas?

JMB – Todas as críticas que a gente lê, ouve, assiste, são observadas. Nós temos uma subsecretaria de capacitação, ensino e educação que é a responsável pela mudança. Mudamos todo o currículo das polícias, levando uma polícia voltada para o nosso cliente, que é o cidadão. Hoje, a gente tem um currículo totalmente novo, adaptado a essa realidade. Mas ternos um problema muito sério no Rio de Janeiro que é a história do Rio, muito ruim em termos de violência. A sociedade se afastou da polícia e a polícia se afastou da sociedade. E isso não foi em vão porque a polícia entrava nesses lugares para fazer guerra, que tem todo um legado, um resultado muito ruim. A UPP acaba com a guerra, e a consequência é que a presença daquele policial novo ali comece, aos poucos, a Porque esse país é inverter isso. As pessoas veem que o policial está ali para ajudar, para fazer amizades e isso “tu percebe” bem nas UPPs mais antigas e menores. Nas que ocupamos mais recentemente e são maiores, é óbvio que esse processo é muito mais difícil. Sobre a crítica, sempre vão ter pessoas especializadas em ver as diferenças e não as igualdades. A gente observa todas elas, agora, não vamos mudar esse quadro de 40 anos e a história e as mazelas das polícias em dez anos. Não tenho essa pretensão. A academia mudou, em maio fizemos um ano de um currículo total mente novo, professores que são pagos. Antes professores não eram pagos e hoje se paga R$ 65 a hora aula, acho que é um dos melhores valores pagos. Quando vamos ler os resultados disso? Talvez daqui a quatro ou cinco anos é que vamos ver os resultados do comportamento desses novos policiais. Mas, repito, temos uma história muito difícil. Acho que para se ajeitar o Rio de Janeiro, a gente talvez perca uma geração.

CE – A maioria desses policiais é do Rio? Então eles também têm em si essa cultura que vemos na população.

JMB – A maioria desses policiais é do Rio, são filhos dessa sociedade. Não posso trazer um policial lá do interior de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul ou de Marte para ser policial aqui. Ele é fruto dessa sociedade, ele é filho daqui.

CE – Ele também tem que ser conscientizado…

JMB – Sei que isso pode ser meio “pinguim de geladeira”, mas acredito muito em apertar lia formação, capacitar, procurar pagar melhor — nós demos mais de 120% de aumento para os policiais nesses sete anos —, você mostra para ele os horizontes da carreira, mas tem muita coisa que se traz de casa, aquela coisa dita pelo pai e pela mãe que você não deve fazer. Eu, se faço uma coisa errada, fico vermelho.

CE – O senhor volta a essa questão. Qual o passo inicial para que, de fato, se converse sobre isso?

JMB – O passo inicial foi dado. As UPPs fertilizam esse território para que ali cresça alguma coisa, e o secretário está nas brigas, agora, o secretário não pode levar isso sozinho. As pessoas têm que acordar para isso. Não adianta todo mundo querer um policial em cada esquina para chamar de seu. Quem ocupou a Normandia e acabou com a guerra foi o exército dos aliados, mas quem fez o Plano Marshall e recuperou a Europa foram outras cabeças, outras pessoas. Acho que aqui nós estamos tendo essa oportunidade e nós nau podemos perdê-la. Hoje, tudo é assim, se discute e vira e mexe, polícia. As pessoas esquecem que nas regiões têm mora dores de rua, bocas de fumo fechadas dez vezes, pessoas com até cinco reincidências, pessoas residindo em habitações totalmente insalubres, algumas, quem sabe, até condenadas. Então tem uru monte de aspectos periféricos que não são discutidos. A questão central é sempre a reação de punir, punir, punir, e aí é polícia.

CE – Oferecer cidadania a essas pessoas quebraria o ciclo.

JMB – Sim. Obviamente nós não vamos ter polícia que chegue à cidade. Na favela é a mesma coisa. Se você não proporcionar serviços lá como acontecem aqui cm baixo, também vai ser difícil, as favelas vão ser sempre esconderijo, vai ter sempre lixo atirado, vai ter sempre um cano d’água que não passa, um esgoto que faz uma curva aqui e ali e se inviabiliza tecnicamente. Vai ter sempre uma ação judicial para impedir isso, e as pessoas vau colocar a culpa no poder público, mas na verdade não é do poder público, mas do judiciário que atendeu uma demanda, legítima, de um cidadão. Então, se não se sentar e discutir ponto por ponto… Estamos tendo a oportunidade de fazer isso. Antes das favelas ninguém falava por que “ah não, lá tem o tráfico, lá não pode”, era uma coisa fora do contexto, agora ela está dentro do contexto.

CE – Neste ano teremos a instalação de mais UPPs. Algum desafio específico?

JMB – Vamos chegar às 40 prometidas, mas a gente já planejou mais alguma coisa para frente, para se alguém estiver aqui quiser tocar. Hoje, a UPP está dada, não tem novidade, é isso aí. A PM (Polícia Militar) já sabe fazer isso sozinha. Nosso foco agora é investir cada vez mais em capacitar e preparar o policial para lidar com a população, porque esse resgate é fundamental. Acabar com esse afastamento que a guerra trouxe. Temos que investir e acho que aí sim temos muito que caminhar na preparação do policial, no diálogo.

CE – E para o resto do estado, quais os planos, os desafios?

JMB – O plano que temos é nosso planejamento estratégico. A gente conseguiu dar às academias um volume intermitente, então entram policiais todos os meses e saem policiais todos os meses. Isso vai nos permitir fazer as UPPs restantes, mas nós vamos continuar com essa formação que vai nos permitir recompletar os efetivos dos batalhões. Nós não temos o efetivo ideal em nenhum batalhão do estado do Rio de Janeiro. Então, esses policiais vão sair e recompletar os batalhões. Pretendemos também diminuir as áreas de atuações dos batalhões. Como, por exemplo, temos o batalhão de Paraty, mas a área dele vem até Mangaratiba. Isso é uma maluquice. O projeto UPP feito, com batalhões recompletados, vamos partir para divisões circunscricionais menores desses batalhões.

CE – O senhor não pensa nas eleições? Em uma vaga aqui ou no Congresso?

JMB – Não, não. Nem aqui, nem no Congresso, nada.

Origem: Revista Conjuntura Econômica, Volume 68, Número 1, Janeiro 2014

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