Dispensa de projeto executivo em obras públicas cria polêmica entre governo e entidades de classe

LUCIANA CALAZA

KARINE TAVARES

“Problemas no projeto original atrasam obra no Comperj”. “Mudanças em projeto atrasam obra de saneamento em Porto Alegre”. “Alteração em projeto atrasa obras em Barra Mansa”. Não faltam exemplos de manchetes recentes relacionando atrasos em obras públicas a questões em seus projetos. Modificações que podem ser feitas por conta de duas leis, a 8.666/93 (Lei de Licitações) e a 12.462/2011 (Regime Diferenciado de Contratações, ou RDC), que transferem às construtoras e empreiteiras a responsabilidade de fazer o projeto executivo de arquitetura. Isto porque permitem que as licitações para a escolha das empresas que vão tocar a obra sejam feitas apenas com base no projeto básico, no caso da Lei de Licitações, ou do anteprojeto, no RDC.

O tema é polêmico. Para o governo, as leis agilizam o processo e dão mais velocidade às obras. Para os arquitetos, a falta do projeto executivo dá margem a reajustes e alterações constantes no orçamento e nas obras, gerando atrasos e gastos adicionais — que podem ser dos construtores ou mesmo do governo.
No fim de julho, o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) decidiu abrir a discussão e encaminhou à Presidência da República um manifesto em que propõe a alteração da legislação para que as obras públicas sejam licitadas somente a partir do projeto completo. E ainda aponta como saída a realização de concursos de arquitetura para a escolha dos projetos de obras públicas, o que já é considerado “preferencial” pela própria Lei de Licitações.

— Quem projeta não constrói — afirma Sérgio Magalhães, presidente do IAB. — Tal promiscuidade entre projeto e obra é indutora de reajustes e superfaturamento, e fator estimulante de corrupção. Desperdício, custos elevados, prazos não cumpridos são os resultados de obras contratadas sem uma definição clara do que se quer construir. O mundo desenvolvido há muito tempo separou o que é projeto e o que é obra.

Ronny Charles Lopes de Torres, advogado da Advocacia-Geral da União, discorda. Ele defende o RDC — a lei de 2011, aplicável exclusivamente às licitações relativas às Olimpíadas e à Copa do Mundo — e a tese de que o projeto pronto cria distorções, apesar de reconhecer que a lei de 1993 deixa brechas a gastos extras:
— Um exemplo: imagine-se uma obra que custaria X, teve problemas durante a execução, recebeu os ajustes necessários e acabou saindo por 2X. Esse risco era todo da administração pública, que deveria ressarcir a empreiteira pelos gastos extras. O RDC, reconhecendo tal dificuldade, transfere o risco para as executoras das obras: são elas, com base em sua experiência, que calculam e apresentam uma proposta orçamentária. A melhor proposta ganha, mas se a empresa exceder os gastos previstos, é ela quem arca com a diferença. Ganhamos tempo e reduzimos os custos com os chamados “aditivos”. A empresa só terá direito ao aditivo, se o governo quiser modificar o projeto.

Para Magalhães, contudo, a prática mostra o contrário:
— Em toda obra surgem imprevistos, mas a falta de um projeto completo só reforça essa possibilidade, dá margem a um conjunto de falhas que implicam desperdício de tempo e de recursos. Ninguém dispensa o projeto completo numa obra privada. Que empresário faz isso na sua fábrica? E por que na obra pública deveria ser diferente?
Acostumado a tocar grandes projetos de empresas privadas, o arquiteto Henock de Almeida tem os mesmos questionamentos. Segundo ele, a prática defendida pelo governo é inconcebível no setor privado, que exige o cumprimento de prazos e custos iniciais.

— O projeto executivo é como uma partitura de música. Com ela em mãos, qualquer orquestra toca aquela música. Com o projeto pronto, a construtora sabe os custos que vai ter e como executar a obra. Sem precisar fazer estimativas de orçamento, nem jogar os preços para o alto — garante Almeida, acrescentando que o prazo médio para a produção de um projeto executivo é de seis meses. — Mas, claro, isso varia de acordo com a dimensão da obra.

Estudos longos e técnicos compõem projeto

O tempo longo para a produção de um projeto executivo tem justificativa. Além de englobar estudos de solo, hídricos, insolação e diversos outros projetos técnicos feitos por diferentes profissionais — que incluem cálculo estrutural, iluminação, acústica, ar condicionado e exaustão, instalações hidráulicas e elétricas, paisagismo —, um projeto completo ainda deve ter a definição de acabamentos, o que inclui do tipo de materiais a serem utilizados à espessura de vidros e madeiras usadas em esquadrias, por exemplo. Ou seja, são milhares de informações que devem ser bem detalhadas.
Já o projeto básico apresenta apenas a planta dos pavimentos, a fachada e a planta de situação, que mostra a inserção do prédio no terreno.
— Com essas informações, é impossível se fazer um orçamento. O que está acontecendo hoje é que os custos estão sendo calculados com base em suposições — diz Henock de Almeida.

Para Vicente Giffoni, presidente da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (AsBEA/RJ), para ser bom, um projeto precisa ter começo, meio e fim. E sua execução deveria ser acompanhada pelo arquiteto responsável.

— É preciso que o arquiteto que concebeu o projeto participe de todas as etapas de sua execução, coordenando os projetos técnicos e acompanhando as obras. Afinal, é quem melhor conhece o projeto — diz Giffoni, acrescentando que isso deveria ser uma obrigação expressa já no processo de licitação para escolha do projeto executivo, o que é permitido pelo próprio RDC.

Segundo o advogado da União, Ronny Charles Lopes de Torres, a lei de 2011 não determina que a contratação da empreiteira deva ser feita com base apenas nos anteprojetos. Ela deixa a cargo da administração pública a escolha de como gerir todo o processo. São três as possibilidades: licitação para obras públicas com o projeto executivo e o básico prontos; licitação apenas com o projeto básico, que deixa o projeto executivo para a empreiteira; ou licitação em que tanto o projeto básico como o projeto executivo serão produzidos pelos construtores, que assumirão os riscos por eventuais divergências entre esses documentos. No caso, a administração apresenta só o anteprojeto de engenharia.

— Identifico falhas no RDC, mas o percebo como uma tentativa de mudar uma sistemática, a da lei nº 8.666/93, que está defasada para a atual realidade da administração pública, a qual exige contratações eficientes e modelos licitatórios flexíveis — afirma Torres

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