Urbanismo do povo para o povo

De uma reunião de moradores de bairro nasceu em Nova York o parque High Line, um dos projetos urbanísticos mais admirados da atualidade

Marcelo Sakate

A democracia americana nasceu de baixo para cima, observou, no século XVIII, o historiador e pensador francês Alexis de Tocqueville. Em contraposição ao absolutismo europeu, os colonos da Nova Inglaterra decidiam, com grande autonomia, os rumos das comunidades fundadas por eles no Novo Mundo. De baixo para cima nasceu também o parque suspenso High Line, um dos pontos mais visitados e admirados de Nova York. Em 1999, moradores do Chelsea foram convidados a participar de uma reunião a respeito do futuro de uma linha de trem suspensa e desativada havia alguns anos. O destino mais provável seria a demolição. Dois moradores da vizinhança, no entanto, imaginaram um futuro diferente para a linha férrea: transformá-la em um parque suspenso.

Joshua David, jornalista, e Robert Hammond, que trabalhava em uma startup de tecnologia, conheceram-se na reuni comunitária e se aproxima ram pelo interesse, dividido por ambos, em preservar a ferrovia. Não tinham nenhuma experiência em urbanismo, políticas públicas e ações comunitárias. A partir daquele encontro, iniciaram uma campanha em que angariaram o apoio de moradores, celebridades e empresários. Enfrentaram a resistência de autoridades públicas, como o então prefeito Rudolph Giuliani, e também de empresários do mercado imobiliário. David e Hammond conseguiram, ao fim, vencer a burocracia, assegurar a preservação da linha e arrecadar os 150 milhões de dólares, na maIor parte recursos privados, investidos na construção do parque. O impacto no desenvolvimento da vizinhança é estimado em 2 bilhões de dólares, em termos de novos empreendimentos residenciais e comerciais, além de novos restaurantes, galerias de arte e lojas. David e Hammond comandam atual mente a organização Friends of the High Line, responsável pela administração do parque, com 90% de recursos privados. Inaugurado em 2009, com 1,6 quilômetro de extensão, o High Line recebeu 4,5 milhões de visitantes em 2012, mais que o Museu de Arte Moderna, o M0MA.

“Muitas cidades carregam um passado industrial, com suas fábricas antigas, galpões, ferrovias ou espaços desocupados à beira-mar”, afirma David. A dificuldade quase sempre está em encontrar a melhor maneira de reciclar essa herança urbanística. A resposta parece estar nos conselhos comunitários. “O essencial 6 os moradores decidirem quais são os espaços públicos a ser preservados e valorizados”, afirma Hammond. Ambos conversaram com VEJA no fim de setembro, quando estiveram no Brasil para o lançamento do livro High Line — A História do Parque Suspenso de Nova York (Editora BEl, 340 páginas, 75 reais).

No passado, a própria criação da ferrovia suspensa havia partido de uma campanha dos nova-iorquinos. Originalmente, havia linhas de trem de superfície cruzando o West Side da cidade, construídas em meados do século XIX, correndo ao lado do Rio Hudson e interligando portos, fábricas, frigoríficos e armazéns. Com o aumento do tráfego de automóveis, os acidentes e transtornos tomaram-se insuportáveis. A solução foi construir a High Líne, inaugurada nos anos 30. A linha tinha um papel importante no abastecimento de Nova York, função cuja utilidade caiu a zero a partir dos anos 60, com a introdução dos caminhões frigoríficos e a transferência dos entrepostos alimentícios para regiões mais distantes. Os trilhos dormi ram semiabandonados por anos, até renascerem como parque.

O High Line inspirou projetos semelhantes pelo mundo, O próprio parque de Nova York foi, em boa medida, inspirado no parisiense Promenade Plantde, também construído sobre o trajeto de uma linha férrea e aberto em 1993. Há urbanistas que defendem a ideia de que o Minhocão, em São Paulo, possa um dia se transformar em um parque. Mas o sucesso do High Line não pode ser dissociado de um contexto mais amplo de revitalização. Vizinho a ele está o badalado Meatpacking District, a região dos antigos frigoríficos que, bem antes do surgimento do parque, já era um foco de renovação urbana. Os galpões deram lugar a lojas de grifes e restaurantes disputados. Com o High Line, a região ganhou ainda mais apelo. O Whitney Museum of American Art está construindo ali a sua nova sede, em um projeto do arquiteto Renzo Piano, com inauguração prevista para 2015. Ao norte, no terreno onde havia um pátio ferroviário, será erguido o Hudson Yards, o maior complexo imobiliário dos Estados Unidos, com 1,2 milhão de metros quadrados, ao custo de 15 bilhões de dólares. Uma transformação radical para uma porção abandonada da Ilha de Manhattan, e tudo começou em uma reunião de moradores de bairro.

Origem: Revista VEJA, 16/10/2013